Ui que medo !!! (Parte 2)
O amigo
José lança um
segundo aviso e apela à calma e serenidade. Não sei porquê mas tantos apelos à calma já me começam a enervar. Será que o José quer fazer passar a ideia de que a nossa posição não passa de um excesso de ímpeto irreflectido? Seguramente não. Ímpeto irreflectido? Logo o José que opina, sem medos ou contemplações, que a caça à raposa é coisa da “classe endinheirada e citadina (nem rural, nem coitadinha) de Inglaterra que se dedica, aos fins de semana, entre duas "cup of tea", a lançar matilhas de cães sobre indefesas raposas com o intuito de as esquartejar vivas e da forma mais cru”. Pum. Pum. Mai’ nada.
Fica depois enfastiado quando lhe apresento números que desprovam opinião aliás tão cuidada e objectiva. Responde então com sarcasmo áspero querendo fazer passar a ideia de que os apoiantes da caça à raposa mais não são que uns bárbaros sanguinários à espera de ser convertidos às virtudes e à luz da Razão (assim mesmo com letra grande). Para quem não gosta de discussões redutoras convenhamos que não está mal.
Só não vê quem não quer que os participantes em caçadas à raposa (cerca de 1.2 milhões o ano passado – ena pá, tanta gente endinheirada e citadina) são na sua maioria membros de clubes locais, rurais que caçam nas suas próprias terras. 59% dos participantes participa a pé e não a cavalo. Entre os residentes das àreas onde se realizam caçadas (sendo que muitos deles são membros activos dos clubes locais) o apoio à caça é de 60% da população. Importa ainda falar dos mais de 20,000 cães cujo destino é incerto após a proibição e dos cerca de 900 cavalos que, atento o seu valor económico, é mais provável que se safem melhor ou pior. Do ponto de vista económico não falo muito porque da última vez que o fiz o José fez troça de mim e aprendi a lição – digo só que causa prejuízos ainda por contabilizar ao tecido empresarial do meio rural inglês (cerca de 19% de pequenos estabelecimentos comerciais – totalmente desligados da caça – afirmaram em 2000 que talvez não sobrevivessem à proibição). Para acabar com a parte economicista da questão queria só dizer que, de acordo com o Daily Express, a imposição da proibição custará ao erário público Inglês (para o qual eu contribuo) qualquer coisa como £30,000 (não me lembro do número exacto) por cada raposa que é salva. Um bocado caro convenhamos, ainda para mais quando muitas dessas raposas irão depois ser mortas por envenenamento ou à bala. Esta é a parte fácil que toda a gente percebe.
Passemos então à parte difícil, à questão moral da crueldade para com os animais. De todas as questões era a única que não queria abordar porque, como outras questões que envolvem a valoração de um comportamento humano, há sempre valorações de diferentes graus de acordo com cada avalista. Não gosto da desculpa de que esta seria, afinal, uma questão de consciência de cada um. Digo antes que, seguramente, não se trata de uma questão essencial para a evolução civilizacional do mundo ocidental. Ainda assim, para o amigo José não dizer que fugimos à questão, convém esclarecer que não se trata de saber se uma matilha de cães caçar uma raposa é um facto cruel. Não se trata sequer de saber se um cão que mata uma raposa é mais cruel que uma raposa que mata um pinto ou um carneiro (animaizinhos inocentes completamente escolhidos ao acaso). A não ser para aquelas pessoas que ficam muito horrorizadas e revoltadas quando vêem na televisão um urso polar a comer uma foca bébé indefesa ou uma chita a matar um inocente dik-dik – malvados! – acho que é indiscutível que os animais (tal como não têm direitos) não podem ser alvo de críticas morais ou juízos de valor. A única coisa em causa portanto é o comportamento humano que lhes está associado. Penso que nisto estamos de acordo. Portanto, o problema só nasce a partir do momento em que os caçadores têm prazer no acto de caçar. Ainda que útil do ponto de vista cinegético, se na cabecinha perversa do caçador se insinuar entusiasmo na perseguição e captura de um animal – pum, pum! Crime pensamento. Por outro lado, se for um funcionário florestal, frio, clínico, calculista e desinteressado que deixa uma peça de carne envenenada ou dispara um tiro de espingarda a 50 metros é o Estado a tomar conta do que é seu e tudo está bem.
A ser assim então a diferença entre o esquire Inglês que paga £20 libras por semana da quota do clube de caça e participa uma vez por outra numa caçada com cães e o pobre Português sentado no seu sofá que sente um secreto prazer nas suas entranhas mais primárias ao ver no National Geographic uma matilha de lobos (grandes caçadores os sacanas!) a capturar um magnífico caribú na tundra canadiana no intervalo do jogo entre o Gil Vicente e o Rio Ave na TV Cabo (apenas €20 mensais!) é apenas uma diferença de grau. Por outro lado, se o que está aparentemente em causa é o recalcamento de quaisquer emoções perante um determinado comportamento animal (violentos os raios dos bichos!) então parece-me que voltamos à história do pardalito – que culpa, pergunto eu, têm os bifes que se dedicam a esta coisa da caça à raposa que o José tenha ficado com um sentimento de culpa por ter morto um pardal com uma pressão de ar na adolescência? E pronto, não falo mais da questão moral da crueldade. Não vale a pena. Não nos entendemos. Não posso admitir no entanto que o José pinte uma caricatura grotesca e falaciosa de quem tem uma opinião diferente da sua – não por ser mais ou menos inteligente, não por ser mais ou menos sensível, nem sequer por gostar mais ou menos de animais, pura e simplesmente por uma questão de respeito pessoal e tolerância.
Finalmente, voltando aos únicos temas que me trouxeram a este debate em primeiro lugar e sobre os quais não ouvi ainda ao José uma única palavra:
a) Saliento, mais uma vez, o oportunismo político do governo trabalhista (que desconsiderou a posição da Câmara dos Lordes) ao passar esta lei agora mas rementendo os seus efeitos para depois das eleições – o que aliás granjeou ao ministro da pasta dos assuntos rurais o invejável título de persona non grata no meio rural;
b) Desmistifico, de novo, a ideia de que a caça à raposa é uma prática de meia dúzia de meninos queques ingleses de boas famílias citadinas que adoram caçar a cavalo (sei lá!) – a maioria caça a pé e pertence a pequenos grupos locais;
c) Alerto, com preocupação, para a facilidade com que os governos actuais decretam proibições a torto e a direito quando, as mais das vezes, as consequências dos seus actos não estão devidamente estudadas e são feitas, surprise, surprise, para Inglês ver – a última marcha de protesto contra a proibição foi a segunda maior da história britânica atrás apenas das manifestações contra a guerra no Iraque.
Que fique bem claro, eu não defendo a caça à raposa. Defendo sim o direito de os cidadãos de um país livre e democrático se dedicarem à prática de quaisquer actos que muito bem entendam desde que não violem nenhum direito fundamental ou ponham em causa a estrutura social. Qualquer proibição ou restrição de tal direito à liberdade deve ser necessária à salvaguarda de um direito ou interesse de valor idêntico ou superior, devendo ainda ser proporcional e razoável. Esta proibição, manifestamente, não é nenhuma destas coisas. Que sentido faz o Estado lançar todo o seu poder coercivo sobre uma parcela da sua população que cada vez se sente mais isolada e marginalizada no seu espaço físico, fartos de ministros engravatados, de fatinhos arranjados e línguas aguçadas que lhes dizem como é que hão de viver, que hábitos é que podem ou não ter, que plantas é que podem cultivar, que parcelas das suas terras é que têm de abrir a visitantes. Será porventura defeito de fabrico mas não consigo evitar identificar-me com essa parecla da população (mais do que com as raposas vá-se lá perceber porquê) e, por mais que tente, não consigo justificar plenamente uma proibição tão violenta e com consequências tão nefastas.
A única razão porque resolvi escrever acerca deste tema é porque acredito que vale a pena pensar para além das parangonas dos jornais ou da opinião confortável que a superioridade moral nos dita autoritariamente. É fácil ser superiores e donos das verdades confortáveis. Difícil é descer do pedestal e falar do e para o mundo real.
Pá.
FA