GLOSAS A ROSAS
A Direita Lusitana e o 25 de Abril
Por
FERNANDO ROSAS
Quarta-feira, 04 de Fevereiro de 2004
Há que reconhecer que eles já criaram uma imagem de marca, os "cavaglieri" lusitanos. Muito engomadinhos e pomposos nesse estilo de compromisso entre o vendedor de Alfa Romeos e o estagiário pretensioso de firma chique de advogados, com o seu convencionalismo postiço, esse verniz que mal tapa o caceteirismo instintivo e à flor da pele, eles são os herdeiros políticos e culturais da velha direita portuguesa de sempre. Emblematicamente agrupados, por acerto da história, nesse partido que o prof. Diogo Freitas do Amaral criou para uma tarefa que hoje confessa ter-se demonstrado inviável: reeducar democraticamente para a política parlamentar os descendentes das elites do antigo regime. Esse ? o CDS/PP dos dias de hoje: o campo ideológico daquela direita lusitana que não esqueceu nada, nem aprendeu nada. E que também reconhecemos, em versão "hard", no excesso histriónico e no abuso antidemocrático do "Gauleiter" madeirense do PSD, João Jardim, ou, em versão "soft" de revista cor-de-rosa, no registo populista-delicodoce de Santana Lopes e seu séquito. são eles que comandam o actual Governo.
A Esquerda amnésica e o 25 de Abril
Por JV
Quarta-feira, 04 de Fevereiro de 2004
Há que reconhecer que já criaram uma imagem de marca, a aversão parola à gravata, a camisinha Façonnable em tons escuros, o cabelo cuidadosamente em desalinho (e, nalguns casos, o cachimbo incensando a insensatez). Muito sabedores e pretensiosos nesse estilo de compromisso entre o empregado de galeria de arte de terceira categoria e o revolucionário aburguesado, com o seu progressismo postiço, esse verniz que não tapa o caceteirismo instintivo e à flor da pele, eles são os herdeiros políticos e culturais da extrema-esquerda portuguesa de sempre. Emblematicamente escondidos, por acerto da história, no meio de partidos travestidos e fundidos em “movimento”, apostados em fazer esquecer a sua própria história feita do combate activo contra a democracia parlamentar. Essa é a esquerda na moda: o campo ideológico dos que não esqueceram nada e só aprenderam marketing. E que também reconhecemos, na empáfia intelectualeira de Fernando Rosas, o mentor menor da pandilha; em versão “hard” no excesso histriónico e nas pregações hipócritas do “Grande Educador” Louçã; ou, em versão “soft” de revista cor-de-rosa, no registo gauchochic de Miguel Portas. São eles que comandam a actual Oposição.
São eles, juntamente com outros dirigentes do PSD em registo mais discreto, que, neste 30.º aniversário da Revolução portuguesa de 1974/75, querem ajustar contas com a história. Pessoalmente, acho que têm boas razões para o fazer. O processo revolucionário originado no "25 de Abril" foi um momento histórico singular no século XX português: ele fez tremer e abalou nos seus fundamentos a arrogância de uma oligarquia longamente habituada ao privilégio, ao abuso e à prepotência impunes, vivendo próspera e placidamente à sombra de um regime antidemocrático que existia para a servir. O "25 de Abril" deixou entrever um mundo virado do avesso. E os oligarcas de hoje ainda não esqueceram, nem esquecerão tão cedo, o susto de ontem.
São eles, juntamente com outros dirigentes do PCP e PS em registo mais discreto, que, neste 30.º aniversário do 25 de Abril de 1974, querem ajustar contas com a história. Pessoalmente, acho que têm boas razões para o fazer. O processo revolucionário originado no “25 de Abril” foi um momento histórico singular no século XX português: ele fez tremer e abalou nos seus fundamentos a arrogância dos arrivistas jacobinos, apostados na sovietização, cubanização, maoização e albanização do país, rapidamente apegados ao privilégio, ao saque, ao abuso e à prepotência impunes, antevendo a vida próspera e plácida à sombra do regime totalitário que queriam criar para os servir. O 25 de Abril deixou antever um mundo virado do avesso, que os portugueses recusaram de forma firme e pronta. E os aspirantes a déspotas de ontem ainda não esqueceram, nem esquecerão tão cedo, o susto de verem o povo - de que se arrogaram donos e representantes - a repudiar, enojado, as suas “soluções” - para Portugal.
Essa direita, que não esquece nem aprende, escourada em alguma recente historiografia económica neoconservadora, vem contar-nos a lenda de uma economia que, nos idos de 60 e inicio dos 70, crescia euforicamente num processo de "convergência real" com a Europa (para o que a existência de um regime antidemocrático seria irrelevante, quando não vantajosa), até suceder a "tragédia" de Abril, interrompendo essa senda virtuosa do progresso. Escamoteiam o essencial: que esse foi um crescimento assente numa dupla e inexorável injustiça: a imensa injustiça social e regional na distribuição da riqueza e a injustiça política que proibia, reprimia e perseguia qualquer tentativa legal de expressão ou de associação visando a correcção ou a resistência a tal iniquidade. A Revolução portuguesa de 1974/75, é bom não o esquecer, foi, também, um singular momento histórico de inversão dos pesos da balança secularmente desequilibrado entre o capital e o trabalho.
Essa esquerda, que não esquece nem aprende nada, escorada em alguma historiografia marxista não muito recente, vem contar-nos a lenda de uma efémera idade de ouro, um momento fugaz de contacto com o “céu”, que, nos idos de 74 e 75, floria frondosamente num processo de “convergência real” com os outros povos socialistas libertados (para o que a instauração de um regime totalitário seria vantajosa), até suceder a “tragédia” da consolidação da democracia, interrompendo essa senda virtuosa. Escamoteiam o essencial: quem foi que, então, defendeu, de facto, a democracia, quem foram os partidos que se bateram pela institucionalização de um sistema político de modelo ocidental (apesar das retóricas constitucionais).
A direita que vai cautelosamente destilando o discurso da reabilitação do passado e da demonização da revolução, essa mesma cujos antepassados recentes serviram a ditadura, sem estados de alma nem angústias democráticas, em lugares de topo no Estado ou no partido único, descobriu recentemente que só existia democracia em Portugal desde o início dos anos 80, quando a direita reciclada e coligada na AD regressou ao poder. Opondo essa sua democracia de projecto contra-revolucionário à revolução de Abril, espécie de prelúdio não democrático e "totalitário" da nova aurora conservadora.
A esquerda que vai cautelosamente destilando o discurso da reabilitação do seu próprio passado e da demonização do antes e do depois da revolução, essa mesma que serviu ditaduras e procurou instalar uma em Portugal, sem estados de alma nem angústias democráticas, em lugares de responsabilidade política e advogando o sistema de partido único, descobriu recentemente que só existiu verdadeira democracia em Portugal no período de 1974/75 quando pôde dar vazão aos seus ímpetos revanchistas e sabáticos. Opondo essa sua “democracia” de projecto revolucionário à democracia de facto e de direito, reconhecida e aceite como tal em todos os países civilizados, espécie de epílogo burguês e capitalista das novas “auroras cantantes”.
Esquecem que a liberdade foi a primeira coisa a ser conquistada pela "desordem" desde o próprio dia 25 de Abril. Porque foi imposta pela iniciativa popular de massa, na rua, ao próprio movimento militar. Assaltando, desarmada, sob fogo, a sede da polícia política e impondo a sua dissolução e o julgamento dos seus responsáveis aos militares; atacando e destruindo as instalações da censura prévia; marchando sobre as cadeias da PIDE e obrigando à libertação incondicional de todos os presos políticos; conquistando as liberdades de associação e de expressão por modo próprio, muito antes da sua consagração na lei. No decurso do processo revolucionário, é sabido que essas liberdades estiveram, por vezes, sob a mira de tentações várias que ameaçariam a sua sobrevivência. Mas foi porque elas, em todas as circunstâncias, foram mais fortes e prevaleceram como conquistas inabaláveis, isto é, como realidades políticas civicamente conquistadas e não outorgadas pela generosidade de um poder previdente, que foi possível aprovar a Constituição e institucionalizar a democracia em 1976. E, já agora, que foi possível à nova direita regressar à governação com a primeira AD. É por isso que se pode dizer que a revolução, essa explosão multiforme de iniciativa popular, essa força telúrica que, muito para além dos directórios partidários ou militares, ousou partir à conquista do céu, tomar o destino nas mãos, ocupando as ruas, as casas devolutas, as terras do latifúndio, as empresas abandonadas, organizando-se por iniciativa própria e largamente espontânea, essa Revolução de 1974/75 foi a génese específica e distintiva da democracia portuguesa. E que é contra o que resta desse património genético que hoje se afadigam os próceres da direita portuguesa.
Esquecem que não há liberdade sem justiça, e a “desordem” pós-25 de Abril acarretou, necessariamente, muitas e graves violações a estes dois princípios. A manipulação grosseira que então fizeram das, disfemisticamente chamadas, “massas” - grupos ultra-minoritários, como as eleições se encarregaram de demonstrar - condicionaram de forma séria e, nalguns casos irreversível, o movimento militar, composto por gente de todos os quadrantes políticos, e a evolução do próprio país.
No decurso do processo revolucionário, é sabido que as liberdades, mesmo as mais elementares,
estiveram, por vezes, sob a mira de tentações várias desta esquerda que ameaçariam a própria sobrevivência e unidade de Portugal. O cerco à Assembleia Constituinte que protagonizaram e/ou apoiaram demonstra à saciedade a sua fundada crença no sistema em que vivemos e a fé inabalável no tal povo que tanto alardeiam e nos princípios e liberdades que dizem defender. Mas foi porque elas, em todas as circunstâncias, foram mais fortes e prevaleceram como conquistas inabaláveis, isto é, como realidades políticas civicamente conquistadas e não toleradas pela generosidade de um poder tutelar previdente, que foi possível fazer o 25 de Novembro, aprovar a Constituição e institucionalizar a democracia em 1976. E, já agora, que foi possível permitir a esta esquerda anti-sistémica e anti-democrática que aceitasse as regras e se integrasse no sistema político, revelando uma magnanimidade que, se o desfecho tivesse sido outro, nunca teria existido. É por isso que se pode perceber que o PREC seja visto hoje como um grosseiro e anacrónico atentado contra a liberdade individual, a propriedade privada e a economia nacional, responsável em grande medida pela crise que se seguiu, mercê da manipulação multiforme da chamada iniciativa popular, que, com óbvia instigação dos directórios partidários e militares que lhes prometeram a conquista do céu, (sem sentir as cordas do bonecreiro) ocupou de forma atrabiliária, quase sempre caótica e violenta e, em muitos casos, criminosa, as ruas, as casas, estivessem devolutas ou habitadas, as terras de latifúndio e minifúndio, estivessem ou não a ser bem exploradas, as empresas abandonadas e viáveis (desde que não fossem estrangeiras). Foi na rejeição desse modelo e de todos os outro modelos ditatoriais que se fundou o que de melhor vive da Revolução de 1974/75 e foi essa a génese específica e distintiva da democracia portuguesa. E é contra esse património genético que hoje se afadigam os próceres desta esquerda portuguesa.
Mas talvez a bandeira mais apetecida desta direita regressista e nostálgica da gesta dos santos e cavaleiros seja a do colonialismo e da guerra colonial que exaltam sem pudor, condenando, isso sim, o "crime" nefando da descolonização. Quando o crime está, precisamente, nessa guerra injusta e absurda imposta pela ditadura, durante 13 anos, ao povo português e aos povos das colónias, com o seu indizível rasto de horrores, de violências, de abusos, com os cerca de dez mil mortos portugueses e não se sabe quantos angolanos, moçambicanos e guineenses, e de tantos e tantos feridos física e mentalmente para sempre. Foi a cegueira do colonialismo português e do regime que o sustentou a primeira e a principal responsável pela descolonização que foi possível levar a cabo em 1974/75.
Mas talvez uma das bandeiras mais brandidas desta esquerda amnésica e nostálgica da gesta dos comandantes e timoneiros seja a do anti-colonialismo e da falta de respeito pelos que viveram no Ultramar e aí combateram por obrigação ou por convicção numa ideia de Portugal que nem foi sempre minoritária, nem foi sempre inviável, mas que acabou. Esquece as suas responsabilidades na entrega vergonhosa e irresponsável do poder sem qualquer processo de autodeterminação aos grupos combatentes, na instigação continuada da deserção do nosso exército, a sua contribuição activa para a afirmação de dirigentes corruptos e criminosos educados nas escolas soviética e chinesa (e americana), para a eclosão das guerras civis, para o destroçar de sociedades e economias e para a contabilização de milhões de mortos. Esta esquerda aplaudiu ruidosamente o alijar irresponsável da “carga” por parte de Portugal, enquanto caucionou e saudou as intervenções, essas sim, colonialistas de Moscovo e Cuba por todo o continente africano. O resultado das “libertações” que promoveram está hoje à vista de todos.
E é intolerável que 30 anos depois, apesar de tudo nesta democracia que nos sobra, haja forças políticas que se permitam o discurso serôdio da apologia patrioteira da guerra com pouco mais do que o propósito rasteiro de arrebanhar alguns votos entre os antigos militares que a sofreram.
E é intolerável que 30 anos depois, apesar de tudo em democracia, face à miséria, degradação e corrupção que assolam a África, haja forças políticas que se permitam o discurso serôdio da apologia pura e simples das descolonizações e dos “movimentos de libertação nacional” com pouco mais do que o propósito rasteiro de arrebanhar alguns votos entre o mesmo pacifismo suburbano que, no tempo da guerra fria, bramava contra os americanos.
A direita de que vos falo não é uma abstracção retórica ou uma figura de estilo. Ela não só está no poder, como, com os seus um e pouco por cento que lhe dão as últimas sondagens, tem refém toda a política do Governo PSD-PP, dependente do apoio da extrema-direita para manter a maioria parlamentar. Ela é a cara da sua política de privatização da segurança social, de ataque generalizado aos direitos do trabalho, de despesismo megalómano em projectos militares sem sentido na defesa, de perseguição e prisão das mulheres que interrompem voluntariamente a gravidez e de oposição ao referendo sobre a despenalização, de estrangulamento do ensino superior público e da investigação, das políticas xenófobas e discriminatórias em matéria da imigração ou da impotência generalizada no domínio da justiça.
A esquerda de que vos falo não é uma abstracção retórica ou uma figura de estilo. Ela não só condiciona tentacularmente o poder mediático, como, com os seus dois e pouco por cento que lhe deram as urnas, tem refém toda a oposição, dependente do apoio da extrema-esquerda para apresentar propostas ou tentar fazer a diferença. Ela é a cara da tolerância face ao terrorismo, da imposição da ditadura das minorias, do igualitarismo cego, do despesismo como solução para todos os problemas, da desconsideração pelo papel e importância das forças armadas, da retórica da procupação social mas do desconhecimento profundo da realidade, da desconsideração dos direitos das crianças por nascer, tratando-os como massa de células irrelevante, como vida putativa apenas e só “se a dona da barriga” a quiser, da desconsideração e desrespeito pelas tradições, hábitos, costumes e crenças do seu próprio povo, do facilitismo desculpante, do absoluto relativismo, do ataque reiterado ao papel das polícias, da sobranceria pseudo-intelectual de pacotilha, do revisionismo da sua própria (e triste) história.
Esta minoria radical, populista e trauliteira puxou para a direita a direita portuguesa. Uns e outros levaram o país, o país que trabalha, que estuda, que ensina, que cria, a uma das piores crises da sua história recente.
Esta minoria radical, populista e trauliteira puxou para a esquerda a já esquerdeada esquerda portuguesa. Uns e outros querem levar o país, o país que trabalha, que estuda, que ensina, que cria, a uma das piores crises da sua história recente.
Oxalá a convocatória ao debate cívico deste 30.º aniversário do 25 de Abril possa contribuir para desmontar a pressão para o esvaziamento ritual da efeméride ou até para a sua negação, implícitos nos propósitos ideológicos das direitas no poder. Também com esse debate, e trinta anos depois, estaremos discutir os destinos da democracia portuguesa.
Oxalá a convocatória ao debate cívico deste 30.º aniversário do 25 de Abril possa contribuir para desmontar a pressão para o endeusamento ritual e acrítico da efeméride e, assim, para a sua negação, implícitos nos propósitos ideológicos desta esquerda assente no quarto poder. Também com esse debate, e trinta anos depois, estaremos a discutir os destinos da democracia portuguesa.
JV